quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Cesárea agendada aposentou o trabalho de parto

Estadão - 17/08
Cesárea agendada aposentou o trabalho de parto
Na rede particular, gestantes marcam a operação com meses de antecedência, ainda que sem necessidade

Karina Toledo

A maior parte das brasileiras que tiveram filhos recentemente e são atendidas por planos de saúde não chegou a entrar em trabalho de parto. Seja por influência médica, familiar, por desinformação ou simplesmente por medo de sentir dor, essas mulheres agendaram a cesariana com semanas ou até meses de antecedência, mesmo antes de saber se a gravidez evoluiria sem complicações.

A representante comercial Ana Corina Lemos Santos, de 33 anos, é uma dessas brasileiras. Após nove anos de casamento, engravidou do primeiro filho, Eric, que nasceu há cerca de um mês, por cesárea, em uma maternidade particular de São Paulo. "Nem cogitei com meu médico o parto normal", conta Ana. "São muitos os procedimentos. Tem a respiração, as contrações... Eu tinha medo de fazer algo errado, de ficar esperando horas, com dor. Além disso, queria consertar a marca de uma cirurgia anterior no abdome."

Ana pensa em ter outro filho e, mesmo sabendo que os riscos para sua saúde e do bebê são maiores com a cesariana, o parto normal continua fora de seus planos. "É insegurança minha mesmo. Mas vou pensar sobre o assunto", diz.

"Se a mulher não entra em trabalho de parto, como podemos ter certeza de que o bebê está preparado para nascer?", questiona Martha Oliveira, gerente de produtos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Uma das maiores causas de internação em UTI neonatal hoje, diz ela, é a taquipnéia transitória, desconforto respiratório causado pela presença de líquido nos pulmões. "Isso é conseqüência direta da alarmante taxa de cesarianas sem indicação, pois a prematuridade favorece esse tipo de problema."

A ANS financiou a pesquisa Causas e conseqüências das cesarianas desnecessárias, uma série de artigos realizados pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz). Um dos estudos acompanhou 450 gestantes em dois hospitais conveniados do Rio e comprovou que 92% delas não entraram em trabalho de parto. "Esse dado reflete a realidade nacional e é um dos mais preocupantes", afirma Martha.

O diretor do Departamento de Ações Estratégicas do Ministério da Saúde, Adson França, explica que a cesárea, quando feita com 40 semanas de gestação, aumenta em 16 vezes a possibilidade de problemas circulatórios e respiratórios no bebê. Entre 36 e 37 semanas, o aumento é de 120 vezes. Ainda segundo França, a cirurgia feita sem indicação aumenta em 6 vezes a mortalidade materna e eleva o risco de complicações em futuras gestações. "Mesmo que seja a pedido da mulher, não é ético fazer parto cirúrgico sem necessidade", avalia.

ÍNDICE BRASILEIRO

A Organização Mundial da Saúde recomenda uma taxa de cesarianas não superior a 15%, o que daria conta dos casos de risco para a saúde da mãe ou do bebê. A média brasileira é de 43%. No Sistema Único de Saúde (SUS) esse índice é de 26% e na rede de saúde suplementar é de 80%.

Para a diretora do Grupo de Apoio à Maternidade Ativa (Gama), Ana Cristina Duarte, existe no Brasil a cultura de que o parto normal é perigoso, um sofrimento desnecessário. "Há essa idéia de que os hospitais públicos forçam as mulheres a ter parto normal porque é mais barato e, por isso, inferior. Os médicos da rede particular dizem que as mulheres pedem para fazer cesárea e, como para eles é mais conveniente, ficam quietos."

Na opinião do obstetra Geraldo Caldeira, que atua em grandes maternidades particulares de São Paulo, como Pro Matre Paulista e Santa Joana, dois fatores são determinantes para explicar essa realidade: a má remuneração dos partos pelos planos de saúde e a forma como as mulheres são educadas. "Hoje se paga cerca de R$ 800 num parto por convênio. Não é vantajoso desmarcar toda a agenda do consultório para acompanhar um parto normal. Se quiserem mudar vão ter de oferecer no mínimo R$ 2 mil", afirma. "Outra questão é cultural. Enquanto na Europa as mulheres são educadas desde criança para querer o parto normal, aqui já chegam dizendo ?ai doutor, não quero ter dor, prefiro cesárea?. Isso é algo que leva no mínimo uma geração para mudar."

A pesquisa da ENSP aponta, no entanto, que 70% das mulheres desejam parto normal no início da gestação, mas "vão sendo convencidas pelos obstetras da maior segurança da cesariana e sendo minadas na confiança de que seu corpo seria capaz de enfrentar o trabalho de parto".

"O pré-natal tem a missão de convencer a mulher a desistir do parto normal", afirma Ruth Osava, professora do curso de Obstetrícia da USP Leste e coordenadora do Centro de Parto do Amparo Maternal, uma das maiores maternidades públicas de São Paulo e onde o índice de cesáreas é menor que 20%. "Entre as usuárias do SUS não acontece esse doutrinamento, a maioria chega com perspectiva de um parto normal."

Enfermeiras podem ajudar a reduzir os índices

Acompanhamento do parto por obstetrizes é visto como forma de combater cirurgias desnecessárias A inclusão de obstetrizes ou enfermeiras 'obstetras - a versão moderna das antigas parteiras- nas equipes de atendimento ao parto é uma das soluções apontadas por especialistas para reduzir o índice de cesarianas no País."Os partos de baixo risco poderiam ser acompanhados por enfermeiras especialistas. Os médicos só precisariam intervir se houvesse complicações.É o que acontece na Europa, onde o índice de cesáreas é baixo", diz Ruth Osava, professora do curso de Obstetrícia da USP Leste. O médico Corintio Mariani Neto, membro da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) concorda. "Na maior parte dos casos o trabalho de parto evolui bem, mas tem de deixar acontecer.

Para acelerar, muitas vezes, o médico rompe a bolsa ou coloca a mulher no soro com hormônios para aumentar contrações. Mas a pressa é dele, não é da mulher nem do bebê", analisa. Esse foi o caso da produtora Mariana Thomaz, de 27 anos,quenodia4dejulhodeu à luz a pequena Júlia. "A bolsa estourou de madrugada e cheguei ao hospital às 2h30 da manhã, sem dilatação ou contrações. Chegaram a sugerir cesariana, mas eu insisti no normal. Às 3h já estava no soro com medicamentos para induzir as contrações."

Mariana optou pelo parto normal graças à influência da mãe."Ela teve três filhas e sempre me dizia que não sabia o que era dor de parto. Sempre me passou tranqüilidade", diz. Embora, no seu caso, o nascimento da filha não tenha sido tão indolor, Mariana afirma que não se arrepende da decisão. "A recuperação é ótima e um recém-nascido exige 100% da mãe. No dia seguinte eu já estava andando e dois dias depois já fazia tudo em casa."

Segundo a pesquisa Causas e conseqüências das cesarianas desnecessárias, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz), a inclusão da gestação no domínio médico contribuiu para o aumento das cesarianas desnecessárias, pois esses profissionais "são preparados para atuar em todas as complicações do parto, mas aprendem pouco sobre as variações fisiológicas possíveis de um parto normal, para as quais não há razão de alarme(...) grande parte da intervenção médica utilizada, por ser desnecessária, na realidade, introduz novos riscos".

"Ao optar pela cesariana o médico pensa ter a situação sob controle. No parto normal sempre pode acontecer imprevistos", diz o obstetra Mariani Neto. O medo de ser processado, segundo ele, reforça essa postura. "Se algo der errado durante o parto normal, ainda que o médico tenha feito tudo direito, a primeira coisa que o juiz vai perguntar é por que ele não fez a cesárea." Mariani Neto admite que falta controle sobre a atividade médica. "Os hospitais, já que são tão preocupados com sua imagem e com a qualidade de seus serviços, deveriam fazer auditorias, questionar por que cirurgias estão sendo feitas quando não há indicação, mas eles têm medo de, com isso, perder clientes", afirma. "Os conselhos regionais também poderiam fiscalizar, mas as comissões de ética só agem mediante denúncia. E quem vai denunciar seu médico? Para isso seria necessário, em primeiro lugar, conscientizar as mulheres.".

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial